Emanuel Pinheiro

O nosso jovem autor e redator da equipa do Jornal Escolar, a frequentar o 12º ano, deixou-se contagiar pelas artes literárias de José Saramago, Prémio Nobel da Literatura e Prémio Camões, e do heterónimo pessoano Ricardo Reis, conteúdos programáticos da disciplina de Português.

Na obra de Saramago, ”O Ano da morte de Ricardo Reis”, a Lídia que Ricardo Reis encontra é uma empregada de hotel, mulher do povo, que vive a vida como pode e como sente, personagem antagónica à Lídia das Odes de Ricardo Reis pessoano, a sua musa etérea e inspiradora, caracterizada pela serenidade, pureza, passividade e não envolvência em paixões.

Emanuel Pinheiro abraçou Lídia, deu asas à imaginação e, mais uma vez, nos encantou e deleitou com a sua escrita.

 

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.

Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos

Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.

(Enlacemos as mãos).

 

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida

Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,

Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,

Mais longe que os deuses.

 

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.

Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.

Mais vale saber passar silenciosamente

E sem desassossegos grandes.

 

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,

Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,

Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,

E sempre iria ter ao mar.

 

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,

Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e caricias,

Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro

Ouvindo correr o rio e vendo-o.

 

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as

No colo, e que o seu perfume suavize o momento —

Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,

Pagãos inocentes da decadência.

 

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois

Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,

Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos

Nem fomos mais do que crianças.

 

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,

Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.

Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,

Pagã triste e com flores no regaço.

12-6-1914

Pessoa, Fernando. Odes de Ricardo Reis

 

Perdão  

Temos, Lídia, em mãos, o nosso futuro.
– Não é nosso, se não for, também, o passado!
Mas, se perante o riso Deles perduro…
– Não culpes Deuses por me teres mal amado…

Não chores, minha Lídia, meu amor!
– Pois este homem de mármore sabe chorar?
Contigo, até consegue viver sem dor!
– Mas nunca feliz, sempre incompleto e ímpar…

Ímpar fui eu com ela e, só com ela, só!
– Tão sozinho que a mim esqueceste facilmente.
A viagem do herói são passos sem dó!
– Serias um, se não fosse a húbris presente…

Mas eu sei que tu me amas ainda, sei!
– Mas tu não me amas, esta criada de hotel!
Julguei ser impossível, indigno, errei!
– Qual homem de tragédia que provou fel!

Não me deram os Deuses de tua ambrósia…
– Não te deram os Deuses virtudes, também!
Porquê isso, minha estátua móvel, rósea?
– Porque com “Perdão” ficaria tudo bem.

“Perdão…”
Pedes tarde.
“Mas ficaria tudo bem!”
A apatia que me ensinaste é válida.
“Desculpa, Lídia…”

Emanuel Pinheiro

 

“Reentraria no livro, não fosse o desacordo evidente entre a musa das odes e a mulher do povo que o olha e que em breve se deitaria com ele, fugindo por completo ao arquétipo que ele próprio inventara.

(…) Ah, ah, afinal a tão falada justiça poética sempre existe, tem graça a situação, tanto você chamou por Lídia, que Lídia veio, teve mais sorte que o Camões, esse, para ter uma Natércia precisou de inventar o nome e daí não passou, Veio o nome de Lídia, não veio a mulher, Não seja ingrato, você sabe lá que mulher seria a Lídia das suas odes, admitindo que exista tal fenómeno, essa impossível soma de passividade, silêncio sábio e puro espírito.”

                                                                        Saramago, José. “O Ano da morte de Ricardo Reis”